Back to gallery

Entardecer

Poema do cão ao entardecer

 

Um cão no areal corria presto.

Presto correria o cão no areal deserto.

Era ao entardecer, e o cão corria presto

no areal deserto.

 

Corria em linha reta, presto, presto,

pela orla do mar.

Pela orla do mar, em linha reta,

corria presto, o cão.

 

Era ao entardecer.

No areal as águas derramadas

nas angústias do mar

lambuzavam de espuma as patas automáticas

do cão que presto, presto, corria em linha reta

pela orla do mar.

 

Sem princípio nem fim, em linha reta,

pela orla do mar.

 

Era ao entardecer,

na hora espessa, peganhenta e úmida,

em que um resto de luz no espasmo da agonia

geme nas coisas e empasta-as como goma.

No espaço diluído, esfumado e cinzento,

corria presto o cão no areal deserto.

Corria em linha reta, presto, presto,

definindo uma forma movediça

que perfurava a névoa e prosseguia

pela orla do mar, em linha reta,

focinho levantado, olhos estáticos,

fixando o breve ponto onde se encontram

além de todo o longe

as retas que se dizem paralelas.

 

Alternavam-se as patas na cadência,

na cadência ritmada do movimento presto,

deixando no areal as marcas do contacto.

Presto, presto.

 

Como se um desejo o chamasse, corria presto o cão

no areal deserto.

O ritmo sempre igual, a língua pendurada,

os olhos como brocas, furadores de distâncias.

 

Em seu último espasmo a luz enrodilhou

o cão, o mar, o céu, o próximo e o distante.

Era um suposto cão correndo presto, presto,

num suposto areal, realmente deserto,

por uma linha reta mais suposta

que o areal e o mar

Mas presto, presto, sempre presto, presto,

ia correndo o cão no areal deserto.

 

(António Gedeão)

3,574 views
70 faves
155 comments
Uploaded on September 2, 2011
Taken on August 26, 2011