Nelcio Barbosa
1984 - George Orwell
Pag. 12.
Como poderia se comunicar com o futuro? Era impossível, pela própria natureza. Ou o futuro seria parecido com o presente, caso em que não lhe daria ouvidos, ou seria diferente, e nesse caso a sua situação não teria sentido.
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Pag. 12.
Havia semanas que se preparava para aquele momento, e nunca lhe passara pela cabeça a idéia de precisar de mais que coragem. Escrever seria fácil. Tudo que tinha a fazer era transferir para o papel o intérmino e inquieto monólogo que se desenrolava na sua mente, fazia anos. Naquele momento, todavia, até o monólogo secara.
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Pag. 16.
Insultava o Grande Irmão, denunciava a ditadura do Partido, exigia a imediata conclusão da paz com a Eurásia, advogava a liberdade de palavra, a liberdade de imprensa, a liberdade de reunião, a liberdade de pensamento, gritava histericamente que a revolução fora traída e tudo - numa linguagem rápida, polissilábica, que era uma espécie de paródia do estilo habitual dos oradores do Partido, e até continha palavras em Novilíngua: maior número dessas palavras, com efeito, do que qualquer membro do Partido usaria na vida diária. E todo o tempo, para que não persistissem dúvidas, quanto à realidade oculta pela lenga-lenga especiosa de Goldstein, marchavam por trás de sua cabeça, na teletela, infindas colunas do exército eurasiano fileiras após fileiras de homens sólidos com rostos asiáticos, sem expressão, que vinham até à superfície da placa e sumiam, para ser seguidos por outros exatamente idênticos. O ritmo cavo e monótono das botas dos soldados formavam uma cortina sonora para os balidos de Goldstein.
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Pag. 19.
Winston conseguiu transferir para a moça de cabelo escuro, sentada atrás dele, o ódio que antes dedicava à figura da tela. Belas e vívidas alucinações Ihe atravessaram o cérebro. Haveria de matá-la a golpes de um cajado de borracha: Amarrá-la-ia nua a um poste e a crivaria de flechas como São Sebastião. Possuí-la-ia e a degolaria no momento do gozo. Além disso, percebeu mais claro que antes porque a odiava. Odiava-a porque era jovem, bonita e assexuada, porque desejava ir para a cama com ela, e porque nunca o faria, porque na cinturinha fina e convidativa, que parecia pedir que a segurassem com o braço, só havia a odiosa faixa escarlate, o agressivo símbolo de castidade.
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Pag. 24.
Parsons era colega de Winston no Ministério da Verdade. Era um homem gorducho mas ativo, de estupidez paralisante, uma massa de entusiasmo imbecil — um desses servos dedicados e absolutamente fiéis dos quais dependia a estabilidade do Partido.
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Pag. 25.
— Tem uma chave inglesa? — indagou Winston, apalpando a porca do sifão.
— Chave? — exclamou a sra. Parsons, tornando-se invertebrada outra vez. — Não sei não. Quem sabe as crianças.
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Pag. 27.
Anos atrás — quantos anos? Devia ser uns sete — sonhara estar caminhando num quarto escuro como breu. E alguém, sentado ao seu lado, dissera ao senti-lo passar: "Tornaremos a nos encontrar onde não há treva". Fora dito baixinho, sem ênfase — uma declaração, não uma ordem. E ele continuara sem parar. O curioso é que, na ocasião, no sonho, as palavras não o haviam impressionado maiormente. Somente mais tarde, e aos poucos, é que tinham ganho em significação. Não podia lembrar agora se fora antes ou depois do sonho que vira O'Brien pela primeira vez, nem se lembrava de quando identificara aquela voz como a de O'Brien. Fosse como fosse existia a identificação. O'Brien lhe falara na escuridão.
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Pag 36.
Winston deixou cair os braços e lentamente tornou a encher os pulmões de ar. Seu espírito mergulhou no mundo labiríntico do duplipensar. Saber e não saber, ter consciência de completa veracidade ao exprimir mentiras cuidadosamente arquitetadas, defender simultaneamente duas opiniões opostas, sabendo-as contraditórias e ainda assim acreditando em ambas; usar a lógica contra a lógica, repudiar a moralidade em nome da moralidade, crer na impossibilidade da democracia e que o Partido era o guardião da democracia; esquecer tudo quanto fosse necessário esquecer, trazê-lo à memória prontamente no momento preciso, e depois torná-lo a esquecer; e acima de tudo, aplicar o próprio processo ao processo. Essa era a sutileza derradeira: induzir conscientemente a inconsciência, e então, tornar-se incons ciente do ato de hipnose que se acabava de realizar. Até para compreender a palavra "duplipensar" era necessário usar o duplipensar.
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Pag 37
Elucubrações
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Pag 47
Winston pensou um momento, puxou o falascreve para perto e começou a ditar no estilo familiar do Grande Irmão: estilo ao mesmo tempo militar e pedante, e muito fácil de imitar, por causa da abundância de perguntas retóricas, que ele fazia e ele próprio respondia ("Que lições devemos tirar deste fato, camaradas ? A lição que é também um dos princípios fun damentais do Ingsoc de que", etc., etc.).
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Pag 49
Filólogo
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Pag 54.
Olhando a cara sem olhos, a mandíbula mexendo sem parar, Winston teve a sensação curiosa de não se tratar de um legítimo ente humano, mas de uma espécie de manequim. Não era o cérebro do homem que falava, era a laringe. O que saía da boca era constituído de palavras, mas não era fala genuína: era um barulho inconsciente, como o grasnido dum pato.
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Pag 55.
Carecia de discrição, indiferença, e de estupidez salvadora. Não se podia dizer que fosse ortodoxo. Acreditava nos princípios do Ingsoc, venerava o Grande Irmão, rejubilava-se com as vitórias, odiava os hereges, não apenas com sinceridade como com zelo incansável e informação recente, de que os militantes comuns não se aproximavam. Todavia, um ligeiro ar de má fama estava sempre presente nele. Dizia coisas que era melhor calar, lia livros demais, freqüentava o Café Castanheira, santuário de pintores e músicos. Não havia lei, nem implícita, contra a fre qüência do Café Castanheira; ainda assim, a casa era de maus presságios. Os antigos e desacreditados líderes do Partido costumavam reunir-se lá, antes de serem expurgados. Dizia-se que o próprio Goldstein fora visto algumas vezes lá, anos e décadas passadas. Não era difícil prever o fim de Syme. No entanto era fato que se Syme percebesse, por três segundos que fosse, a natureza das opiniões secretas de Winston, instan taneamente o denunciaria à Polícia do Pensamento. Aliás, era o que faria qualquer um: Syme mais que os outros, porém. O zelo não bastava. Ortodoxia era inconsciència.
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Pag 56.
Quérulo
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Pag 58.
Meditava, ressentido, na textura física da vida. Teria sido sempre assim? Teria a comida tido sempre o mesmo gosto? Olhou em torno da cantina. Um salão de teto baixo, paredes sujas do contacto de inúmeros corpos; maltratadas cadeiras e mesas de metal, tão juntinhas que os cotovelos se tocavam. Colheres arcadas, bandejas trincadas, rústicas xícaras brancas; gordurentas todas as superfícies, sujeira em cada frincha; e um cheiro azedo, composto de gim ordinário, café ruim, guisado metálico e roupa suja. Havia sempre, no estô mago e na pele, uma espécie de protesto, a sensação de que se perdera, para um gatuno, algo a que se tinha direito. Era fato que não tinha recordação de nada muito diferente. Em todas as épocas que lembrava com precisão, nunca houvera suficiente para comer, nunca tivera meias ou roupa branca que não fossem esburacadas, mobília que não fosse capenga e gasta; e cômodos mal aquecidos, trens subterrâneos atulhados, casas caindo aos pedaços, pão escuro, chá raro, café nojento, cigarros insufici entes - nada barato e abundante, exceto gim sintético. E conquanto as coisas piorassem com o envelhecimento do corpo, não era isto um sinal de ser diferente a ordem natural das coisas, quando o coração se confrangia ante o desconforto, a sujeira e a escassez, os invernos intermináveis, as meias pega josas, os elevadores que nunca funcionavam, a água fria, o sabão áspero, os cigarros que se desfaziam, a comida de sabor mau e estranho? Por que achar tudo isso intolerável, a menos que se tivesse uma espécie de lembrança ancestral de coisas outrora diferentes ?
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Pag 59.
Como era fácil, pensou Winston, acreditar que o tipo físico considerado ideal pelo Partido rapazes altos e musculosos, donzelas de grandes seios, louras vi çosas queimadas de sol, alegres - existisse e mesmo predominasse. Na verdade, até onde podia julgar, a maioria, na Pista N.º 1, era de gente miúda, morena, mal favorecida.
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Pag 63
Por um minuto foi difícil continuar. Fechou os olhos e apertou com os dedos, tentando afastar a visão que insistia em voltar. Tinha uma tentação quase indomável de berrar um bando de palavras indecentes a pleno pulmão. Ou bater a cabeça na parede, dar um pontapé na mesa ou atirar o tinteiro pela janela fazer algo violento, doloroso ou ruidoso que pudesse apagar a lembrança que o atormentava.
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Pag 65
Clister
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Pag 69.
SE E HÁ ESPERANÇA, ESCREVEU WINSTON, ESTÁ NOS PROLES. Se esperança houvesse, devia estar nos proles, porque só neles, naquela massa desdenhada, formigante, 85% da população da Oceania, podia se gerar força suficiente para destruir o Partido. O Partido não poderia ser derribado de dentro. Seus inimigos, se é que tinha inimigos, não tinham modo de se reunir, nem mesmo de se identificar. Mesmo que existisse a legendária Fraternidade, como era possível que existisse, era inconcebível que os seus membros pudessem jamais se reunir em grupos maiores que dois ou três. A rebelião revelava-se num olhar, numa inflexão da voz; no máximo, num cochicho ocasional. Mas os proles, se de algum modo adquirissem cons ciência do seu poderio, não precisariam conspirar. Bastava-lhes levantarem-se e sacudir-se, como um cavalo sacode as moscas. Se o quisessem, poderiam demolir o Partido no dia seguinte. Mais cedo ou mais tarde, isso lhes haveria de ocorrer. No entanto!...
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Pag. 70.
Escreveu:
Não se revoltarão enquanto não se tornarem conscientes, e não se tornarão conscientes enquanto não se rebelarem.
Refletiu que a frase poderia ser quase a transposição de um dos textos básicos do Partido. O Partido proclamava, na turalmente, ter libertado os proles da servidão. Antes da Revo lução eram oprimidos pelos capitalistas, tinham sido chicoteados e submetidos à fome, as mulheres forçadas a trabalhar nas minas de carvão (na verdade, as mulheres ainda trabalhavam nas minas), as crianças vendidas às fábricas com a idade de seis anos. Simultaneamente, fiel aos princípios do duplipensar, o Partido ensinara que os proles eram naturalmente inferiores, que deviam ficar em sujeição, como animais, pela aplicação de algumas regras simples. Pouquíssimo se sabia a respeito dos proles. Não era necessário saber muito. Contanto que conti nuassem a trabalhar e se reproduzir não tinham importância suas outras atividades. Abandonados a si mesmos, como gado solto nas planuras argentinas, haviam regressado a um modo de vida que lhes parecia natural, uma espécie de tradição ances tral. Nasciam, cresciam nas sarjetas, iam para o trabalho aos doze, atravessavam um breve período de floração da beleza e do desejo sexual, casavam-se aos vinte, atingiam a maturidade aos trinta, e em geral, morriam aos sessenta. O trabalho físico pesado, o trato da casa e dos filhos, as briguinhas com a vizi nhança, o cinema, o futebol, a cerveja e, acima de tudo, o jogo, enchiam-lhes os horizontes. Mantê-los sob controle não era difícil. Alguns agentes da Polícia do Pensamento estavam sempre entre eles, soltando boatos, marcando e eliminando os poucos indivíduos julgados capazes de se tornar perigosos; mas não se tentava doutriná-los com a ideologia do Partido. Não era desejável que os proles tivessem sentimentos políticos definidos. Tudo que se lhes exigia era uma espécie de patrio tismo primitivo ao qual se podia apelar sempre que fosse ne cessário levá-los a aceitar ações menores ou maior expediente de trabalho. E mesmo quando ficavam descontentes, como às vezes acontecia, o descontentamento não os conduzia a parte alguma porque, não tendo idéias gerais, só podiam focalizar a animosidade em ridículas reivindicações específicas. Os males maiores geralmente lhes fugiam à observação. A grande maioria dos proles nem tinha teletelas em casa. Até a polícia civil inter feria pouquíssimo com eles. Havia enorme criminalidade em Londres! todo um mundo subterrâneo de ladrões, bandidos, prostitutas, vendedores de narcóticos e contraventores de todo tipo; mas como tudo se passava entre os próprios proles, não tinha importância. Em todas as questões morais, permitia-se lhes obedecerem ao código ancestral. O puritanismo sexual do Partido não lhes era imposto. A promiscuidade não era punida; e o divórcio era permitido. Nesse particular, até a adoração religiosa teria sido permitida se os proles demonstrassem algum sintoma de desejá-la ou dela carecerem. Ninguém desconfiava deles. Como dizia o lema do Partido: "Os proles e os animais são livres".
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Pag 73.
De repente achou que as únicas coisas verdadeiramente típicas da vida moderna não eram nem a crueldade nem a insegurança, mas apenas a nudez, a miséria, o desânimo. Olhando-se em torno, verificava-se que a vida não apenas diferia das mentiras que provinham das teletelas, como também dos ideais que o Partido buscava atingir. Muitas atividades cotidianas, mesmo para um membro do Par tido, eram neutras e não políticas, questão de cumprir tarefas tediosas, lutar por um lugar no trem subterrâneo, remendar uma meia gasta, esmolar uma pastilha de sacarina, guardar uma ponta de cigarro. O ideal criado pelo Partido era enorme, terrí vel, luzidio - um mundo de aço e concreto, de monstruosas máquinas e armas aterrorizantes - uma nação de guerreiros e fanáticos, marchando avante em perfeita unidade, todos tendo os mesmos pensamentos e gritando as mesmas divisas <- trezen tos milhões com a mesma cara - trabalhando perpetuamente, lutando, triunfando, perseguindo. A realidade eram cidades caindo em ruínas, escuras, onde o populacho subnutrido peram bulava com sapatos furados, vivendo em remendadas casas do século dezenove que sempre cheiravam a repolho e latrinas de mau funcionamento.
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Pag 75.
Lábios negróides
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Pag. 78.
O bom senso era a heresia das heresias. E o que mais aterrorizava não era que matassem o cidadão por pensar diferente, mas a possibilidade de terem razão. Por que, afinal de contas, como sabemos que dois e dois são qua tro? Ou que existe a lei da gravidade? Ou que o passado é inalterável? Se tanto o passado como o mundo externo só existem na mente, e se a mente em si é controlável...então?
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Pag. 79.
Eles estavam errados! O óbvio, o tolo e o verdadeiro tinham que ser defendidos. Os truísmos são verdadeiros, esse é que é o fato! O mundo sólido existe, suas leis não mudam. As pedras são duras, a água é líquida, os objetos largados no ar caem sobre a crosta da terra. Com a impressão de falar com O'Brien e também de estar fixando um importante axioma, ele es creveu:
A liberdade é a liberdade de dizer que dois e dois são quatro. Admitindo-se isto, tudo o mais decorre.
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Pag. 83.
A Loteria, com seus enormes prêmios semanais, era o acontecimento público a que os proles davam a maior atenção. Era provável que houvesse milhões de proles para quem a Loteria era o principal, se não o único, motivo de continuar a viver. Era o seu deleite, sua loucura, seu anódino, seu estimulante intelectual. Quando se tratava de Loteria, até a gente que mal sabia ler e escrever fazia intrincados cálculos e fantásticas proezas de memória. Havia um exército de homens que ganhava a vida graças à simples venda de sistemas, previsões e amuletos.
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Pag. 90.
"Antes da Revolução a vida era melhor que agora?" deixaria de ser respondível para todo o sempre. De fato, porém, já era irrespondível, pois alguns dispersos sobreviventes do mundo antigo eram incapazes de comparar uma época com outra. Lembravam-se de um milhão de coisas inúteis, duma briga com um colega, a busca de uma bomba de bicicleta, a expressão no rosto de uma irmã falecida, o rodopio da poeira numa manhã de vento, setenta anos atrás: mas todos os fatos relevantes já estavam fora do alcance da sua visão. Eram como a formiga, que pode ver pequenos objetos, mas não enxerga os grandes. E quando a memória falhava, e os registros escritos eram falsificados era forçoso aceitar a assertiva do Partido de que tinham melhorado as condições da vida humana, porque não existia, nem jamais poderia existir, qualquer padrão de comparação.
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Pag. 98.
Ele tornou a tentar, com um pouco mais de êxito, conjurar a imagem de O'Brien. "Tornaremos a nos encontrar onde não há treva", dissera O'Brien. Ele sabia o que significavam aquelas palavras, ou acreditava saber. O lugar onde não havia trevas era o futuro imaginário que nunca se podia ver mais que, pelo pensamento, se podia partilhar misticamente. Mas com a voz da tela a lhe azucrinar os ouvidos, não era possível continuar o fio dos pensamentos.
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Pag. 100.
Uma emoção estranha agitou o coração de Winston. Diante dele estava um inimigo que queria matá-lo; mas diante dele, também, havia uma criatura humana, sofrendo, talvez com um osso quebrado. Já se adiantara instintivamente para ajudá-la. No momento em que a vira cair sobre o braço vendado, sentira como que uma dor no próprio corpo.
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Pag. 112.
Winston estava embriagado pela doçura do ar e o verdor das folhas. Já na caminhada da estação, à luz do sol de maio, se sentira sujo e estiolado, uma criatura de quatro paredes, com os poros entupidos do pó fuliginoso de Londres. Ocorreu-lhe que até aquele momento ela provavelmente não o vira a plena luz do dia. Chegaram à árvore caída de que ela havia falado. A moça saltou sobre o tronco e forcejou abrindo uma touceira, num lugar onde não parecia haver caminho. Quando Winston a seguiu, achou-se numa clareira natural, um pequeno recôndito atapetado de relva e completamente cercado de altos freixos novos, como uma parede. A moça parou e voltou-se.
— Aqui estamos — anunciou.
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Pag. 118.
Tudo quanto cheirasse a corrupção o enchia sempre de ardentes esperanças. Quem poderia saber? O Partido talvez estivesse podre sob a crosta superior; seu culto da severidade e a autonegação podiam ser apenas uma máscara da iniquidade. Se pudesse infeccioná-los todos com lepra ou sífilis, com que prazer o faria! Tudo que servisse para apodrecer, debilitar, minar!
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Pag. 125.
Ela pôs-se a discorrer sobre o assunto. Com Júlia, tudo girava em torno da sua própria sexualidade. Assim que este assunto vinha à baila, de algum modo, mostrava-se muito informada. Ao contrário de Winston, percebera o sentido íntimo do puritanismo sexual do Partido. Não era apenas pelo fato do instinto sexual criar um mundo próprio, fora do controle do Partido e que portanto devia ser destruído, se possível. O mais importante era a privação sexual que provocava a histeria, desejável porque podia ser transformada em febre guerreira e adoração dos chefes. Ou como explicava Júlia:
— Quando amas, gastas energia; depois, ficas contente, satisfeito, e não te importas com coisa alguma. Eles não gostam que te sintas assim. Querem que estoures de energia o tempo todo. Todo esse negócio de marchar para cima e para baixo, dar vivas, agitar bandeirolas, é sexo que azedou. Se estás contente contigo mesmo, por que havias de admirar o Grande Irmão, os Planos Trienais e os Dois Minutos de ódio e todo o resto da maldita burrice?
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Pag. 128.
Mas isso não faz muita diferença. Enquanto os humanos permanecerem humanos, a vida e a morte são a mesma coisa.
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Pag. 131.
Mas naquele momento a multidão os apertou e, acidentalmente, as mãos se encontraram. Ela apertou-lhe ligeiramente as pontas dos dedos, num gesto que parecia pedir não desejo mas afeto.
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Pag. 141.
Durante o mês de junho encontraram-se quatro, cinco, seis... sete vezes. Winston abandonara o hábito de beber gim a toda hora. Parecia não precisar mais dele. Engordara, a variz ulcerada sarara, deixando apenas uma nódoa parda na pele, acima do tornozelo; não sofria mais de acessos de tosse de madrugada. O processo da vida cessara de ser intolerável, e não sentia mais ímpetos de fazer caretas para a teletela nem de gritar nomes feios. Agora que possuíam um esconderijo seguro, quase um lar, já não lhes parecia tão mau encontrar-se freqüentemente, e apenas por algumas horas. O que importava era a existência do quarto sobre a loja do antiquário. Saber que estava lá, inviolado, era quase que o mesmo que estar nele. O quarto era um mundo, uma redoma do passado, onde sobreviviam animais extintos.
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Pag. 142.
Winston e Júlia sabiam — de modo que nunca baniam do espírito — que não podia durar muito o que estava acontecendo. Havia ocasiões em que a morte vindoura parecia tão palpável quanto a cama que ocupavam, e então se agarravam com uma espécie de desesperada sensualidade, como uma alma danada se agarra ao último bocado de prazer quando faltam apenas cinco minutos para soar a hora. Mas havia também ocasiões em que tinham a ilusão não apenas de segurança como de permanência. Tinham a impressão de que, enquanto estivessem naquele quarto, nenhum mal lhes poderia advir. Chegar até lá era difícil e perigoso, mas o quarto era um santuário. Era como se Winston olhasse dentro do peso de papel, com sensação de ser possível penetrar aquele mundo de vidro, e que, uma vez dentro dele, o tempo se imobilizaria. Com freqüência se entregavam a sonhos escapistas conscientes. A sorte haveria de ajudá-los, indefinidamente, e continuariam a aventura até o fim da vida natural. Ou Katharine morreria e, com auxílio de manobras sutis, Winston e Júlia conseguiriam casar. Ou então se suicidariam juntos. Ou desapareceriam, alterando as fisionomias de modo que ninguém os reconhecesse, aprenderiam a falar com sotaque proletário, arranjariam emprego numa fábrica e viveriam até o fim numa ruela obscura. Tudo tolice, como bem sabiam. Na verdade, não havia fuga.
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Pag. 143.
Na verdade, não havia fuga. Não tinham intenção de executar nem o único plano praticável: o suicídio. Viver dia a dia, semana a semana, esticando um presente que não tinha futuro, parecia um instinto irresistível, como os nossos pulmões sempre procuram inspirar, enquanto existe ar.
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Pag. 146.
— Não adiantou nada, porque a joguei fora uns minutos depois. Porém se a mesma coisa acontecesse hoje, eu guardaria a prova.
— Ora, eu não! Estou disposta a correr riscos, mas só por coisas que valham a pena, não por causa de pedacinhos de papel. Que poderias fazer com o recorte, se o guardasses?
— Pouca coisa, talvez. Mas era prova. Poderia ter semeado algumas dúvidas, aqui e ali, supondo que ousasse mostrá-lo a alguém. Não creio que possamos alterar coisa alguma nesta vida. Mas posso imaginar pequenos nódulos de resistência brotando aqui e ali... pequenos grupos de gente que se reúne, e vão crescendo, e deixando algumas notas, de modo que a geração seguinte possa continuar a obra.
— Não estou interessada na próxima geração, querido. Estou interessada em nós.
— És rebelde só da cintura para baixo — disse ele.
Ela achou esta frase excepcionalmente jocosa e atirou os braços em torno dele, deliciada.
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Pag. 147.
Falando com ela, Winston percebeu como era fácil aparentar ortodoxia, sem ter a menor noção do que fosse ortodoxia. De certo modo, o ponto de vista do Partido se impunha com mais êxito às pessoas incapazes de compreendê-lo. Aceitavam as mais flagrantes violações da realidade porque jamais percebiam inteiramente a enormidade do que se lhes exigia, e não estavam suficientemente interessadas para observar o que acontecia. Graças à falta de compreensão permaneciam sãs de juízo. Apenas engoliam tudo, e o que engoliam não lhes fazia mal, porque não deixava resíduo, do mesmo modo que um grão de milho passa, sem ser digerido, pelo corpo de uma ave.
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Pag. 153.
Chocarreiramente
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Pag. 153.
A garota apanhou e ficou a olhar, feito água parada
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Pag. 157.
Não podiam alterar os sentimentos do indivíduo: nem ele próprio o consegue, mesmo que o deseje. Podiam desnudar, nos mínimos detalhes, tudo quanto houvesse feito, dito ou pensado; mas o imo do coração, cujo funcionamento é um mistério para o próprio indivíduo, continuava inexpugnável.
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Pag. 163.
Havia uma caixa de cigarros, de prata, sobre a mesa. Com ar distraído, O'Brien ofereceu-a aos outros, serviu-se e depois levantou-se, pondo-se a passear de um lado para outro da sala, como se pensasse melhor de pé.
Pag. 165.
Mais do que de força, dava a impressão de confiança e de compreensão, colorida de ironia. Por mais sério que fosse, não tinha nada da parcialidade estreita que distingue o fanático. Quando falava de assassinio, suicídio, moléstias venéreas, membros amputados e rostos alterados, era com um ligeiro ar de zombaria. "Isto é inevitável", parecia dizer o seu tom de voz. "Isto é o que temos a fazer, sem piedade. Mas não é o que faremos quando a vida de novo valer a pena ser vivida". Uma onda de admiração, quase de adoração, fluiu de Winston. Esquecera-se da figura remota de Goldstein. Quando se olhava para os ombros poderosos de O'Brien a sua cara de feições tão maciças, tão feia e no entanto tão civilizada, era impossível acreditar que pudesse ser derrotado. Não havia estratagema que ele não pudesse vencer, nenhum perigo que não pudesse prever. Até Júlia parecia impressionada. Deixara o cigarro apagar e agora escutava atentamente. O'Brien continuou:
— Já ouviste boatos da existência da Fraternidade. Sem dúvida já tens idéia dela. Imaginaste, provavelmente, um vasto mundo clandestino de conspiradores, reunindo-se secretamente, em porões, rabiscando mensagens nas paredes, reconhecendo-se por meio de códigos ou gestos especiais. Nada disso existe. Os membros da Fraternidade não têm meio algum de se reconhecer e é impossível a qualquer um conhecer a identidade de mais que outros poucos. O próprio Goldstein, se caísse nas mãos da Polícia do Pensamento, não poderia fornecer uma lista completa dos conspiradores, nem informação que permitisse compilá-la. Não existe essa lista. A Fraternidade não pode ser eliminada porque não é uma organização no sentido comum da palavra. Nada a cimenta, exceto uma idéia, uma idéia indestrutível.
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Pag. 173
Júlia não devia demorar; enquanto não viesse, leria o livro. Sentou-se na poltrona esfiapada e abriu a pasta.
Um pesado volume negro, numa encadernação tosca, sem nome nem título na capa. O tipo também parecia ligeiramente irregular. As páginas estavam gastas nas margens, e se destacavam com facilidade, como se o livro tivesse passado por muitas mãos. No frontispício havia o título:
TEORIA E PRÁTICA DO COLETIVISMO
OLIGÁRQUICO
por
Emmanuel Goldstein
Winston pôs-se a ler:
CAPÍTULO I
Ignorância é Força
Desde que se começou a escrever a história, e prova velmente desde o fim do Período Neolítico, tem havido três classes no mundo, Alta, Média e Baixa. Têm-se subdividido de muitas maneiras, receberam inúmeros nomes diferentes, e sua relação quantitativa, assim como sua atitude em relação às outras, variaram segundo as épocas; mas nunca se alterou a estrutura essencial da sociedade. Mesmo depois de enormes comoções e transformações aparentemente irrevogáveis, o mesmo diagrama sempre se restabeleceu, da mesma forma que um giroscópio em movimento sempre volta ao equilíbrio, por mais que seja empurrado deste ou daquele lado.
Os objetivos desses três grupos são inteiramente irreconciliáveis…
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Pag. 176.
Todos os territórios disputados contêm valiosos minerais, e alguns produzem importantes produtos vegetais, tais como borracha, que nos climas mais frios é necessário sintetizar por métodos relativamente caros. Acima de tudo, porém, contêm uma prodigiosa reserva de mão-de-obra barata. Quem quer que controle a África equatorial, ou os países do Oriente Médio ou a Índia meridional, ou o arquipélago indonésio, dispõe também de massas de dezenas ou centenas de milhões de peões diligentes e mal pagos. Os habitantes dessas regiões, reduzidos mais ou menos abertamente à condição de escravos, passam continuamente de conquistador a conquistador e são gastos, como o carvão ou o petróleo, na corrida para produzir mais armamentos, capturar mais território, controlar mais braços, para produzir mais armamentos, para capturar mais território e assim infinitamente.
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Pag. 177.
O objetivo primário da guerra moderna (segundo os princípios do duplipensar, essa meta é simultaneamente reconhecida e não reconhecida pelos cérebros orientadores do Partido Interno) é usar os produtos da máquina sem elevar o padrão de vida geral. Desde o fim do século dezenove, foi latente na sociedade industrial o problema de dar fim ao excesso de artigos de consumo. Atualmente, que poucos seres humanos têm bastante para comer, esse problema evidentemente não urge, e assim poderia vir a ser, mesmo sem a intervenção de um processo destruidor artificial. O mundo de hoje é um planeta nu, faminto e dilapidado, em comparação com o que existia antes de 1914, e ainda mais se comparado com o futuro imaginário aguardado pelos seus habitantes daquela era. No começo do século vinte, a visão de uma sociedade futura incrivelmente rica, repousada, ordeira e eficiente um refulgente mundo antissético de vidro, aço e concreto branco de neve fazia parte da consciência de quase toda pessoa alfabetizada. A ciência e a tecnologia se desenvolviam num ritmo prodigioso, e parecia natural imaginar que continuassem se desenvolvendo. Isso não ocorreu, todavia, em parte por causa do empobrecimento causado por longa série de guerras e revoluções, em parte porque o progresso científico e técnico dependia do hábito empírico do raciocínio, que não podia sobreviver numa sociedade estritamente regimentada. No seu conjunto, o mundo é hoje mais primitivo do que era cinquenta anos atrás. Certas zonas atrasadas progrediram, e vários dispositivos, sempre ligados à guerra e à espionagem policial, foram desenvolvidos, mas já não há experiência nem invenção, e nunca foram completamente reparados os estragos da guerra atômica de 1950 e pouco. Não obstante, persistem os perigos inerentes à máquina. Desde o momento em que a máquina surgiu, tornou-se claro a todos que sabiam raciocinar que desaparecera em grande parte a necessidade do trabalho braçal do homem e, portanto, a da desigualdade humana. Se a máquina fosse deliberadamente utilizada com esse propósito, a fome, o excesso de trabalho, a sujeira, o analfabetismo e a doença poderiam ter sido eliminados em algumas gerações. E na verdade, sem ter sido usada com esse propósito, porém por uma espécie de processo automático - produzindo riqueza que às vezes se tornava impossível deixar de distribuir - a máquina elevou grandemente o padrão de vida do ser humano comum, num período de uns cinqüenta anos, ao fim do século dezenove e no começo do vinte.
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Pag. 178.
Tornou-se também claro que o aumento total da riqueza ameaça a destruição - com efeito, de certo modo era a destruição — de uma sociedade hierárquica. Num mundo em que todos trabalhassem pouco, tivessem bastante que comer, morassem numa casa com banheiro e refrigerador, e possuíssem automóvel ou mesmo avião, desapareceria a mais flagrante e talvez mais importante forma de desigualdade. Generalizando-se, a riqueza não conferia distinção. Era possível, sem dúvida, imaginar uma sociedade em que a riqueza, no sentido de posse pessoal de bens e luxos, fosse igualmente distribuída, ficando poder nas mãos de uma pequena casta privilegiada. Mas a prática tal sociedade não poderia ser estável. Pois se o lazer na e a segurança fossem por todos fruídos, a grande massa de seres humanos normalmente estupidificada pela miséria aprenderia a ler e aprenderia a pensar por si; e uma vez isso acontecesse, mais cedo ou mais tarde veria que não tinha função a minoria privilegiada, e acabaria com ela. De maneira permanente, uma sociedade hierárquica só é possível na base da pobreza e da ignorância. Regressar ao passado agrícola, como imaginaram alguns pensadores no começo do século vinte, não era solução praticável.
Pag. 179.
O essencial da guerra é a destruição, não necessariamente de vidas humanas, mas dos produtos do trabalho humano. A guerra é um meio de despedaçar, ou de libertar na estratosfera, ou de afundar nas profundezas do mar, materiais que doutra forma teriam de ser usados para tornar as massas demasiado confortáveis e portanto, com o passar do tempo inteligentes. Mesmo quando as armas de guerra não são destruídas, sua manufatura ainda é um modo conveniente de gastar mão-de-obra sem produzir nada que se possa consumir. Uma Fortaleza Flutuante, por exemplo, contém trabalho suficiente para construir várias centenas de navios cargueiros. Depois de algum tempo é desmantelada, por obsoleta, sem ter trazido benefício material a ninguém, e com novo e enorme esforço, constrói-se outra. Em princípio, o esforço bélico é sempre planejado de maneira a consumir qualquer excesso que possa existir depois de satisfeitas as necessidades mínimas da população. Na prática, as necessidades da população são sempre subestimadas, e o resultado é haver uma escassez crônica de metade dos essenciais, mas isto é considerado vantagem. É uma política consciente manter perto do sofrimento até os grupos favorecidos porquanto o estado geral da escassez aumenta a importância dos pequenos privilégios e assim amplia a distinção entre um grupo e outro. Pelos padrões do início do século vinte, até mesmo um membro do Partido Interno leva vida austera e laboriosa. Não obstante, os poucos luxos de que goza, o apartamento espaçoso e bem mobiliado, a melhor qualidade da sua roupa, a superioridade da sua comida, bebida e fumo, seus dois ou três criados, seu automóvel ou helicóptero particular, o colocam numa esfera diferente de um membro do Partido Externo, que por sua vez tem vantagens semelhantes em comparação com as massas submersas a que chamamos "proles". A atmosfera social é de uma cidade sitiada, onde a posse de um pedaço de carne de cavalo diferencia entre a riqueza e a pobreza. E, ao mesmo tempo, a consciência de estar em guerra e portanto em perigo, faz parecer natural a entrega de todo poder a uma pequena casta: é uma inevitável condição de sobrevivência.
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Pag. 181.
E mesmo o progresso tecnológico só se verifica quando os seus produtos podem ser, de alguma forma, utilizados para limitar a liberdade humana.
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Pag. 187.
Winston parou de ler por um momento. Na distância remota uma bomba-foguete estourou. Ainda não sumira a deliciosa sensação de se sentir só com o livro proibido, num quarto sem teletela. A solidão e a segurança eram sensações físicas, de certo modo misturadas com o cansaço do seu corpo, a maciez da cadeira, a brisa gentil que tocava o rosto, soprando pela janela. O livro fascinava ou, mais exatamente, dava-lhe nova tranquilidade. De certo modo, nada lhe dizia de novo, mas isso fazia parte do seu atrativo. Dizia o que ele diria, se lhe fosse possível pôr ordem nos seus pensamentos desataviados. Era produto de um cérebro semelhante ao seu, porém enormemente mais poderoso, mais sistemático, menos medroso. Ele percebia que os melhores livros são os que dizem o que já se sabe.
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Pag. 189.
Os objetivos desses três grupos são inteiramente irreconciliáveis. O objetivo da Alta é ficar onde está. O da Média é trocar de lugar com a Alta. E o objetivo da Baixa, quando tem objetivo - pois é característica constante da Baixa viver tão esmagada pela monotonia do trabalho cotidiano que só intermitentemente tem consciência do que existe fora de sua vida - é abolir todas as distinções e criar uma sociedade em que todos sejam iguais. Assim, por toda a história, trava-se repetidamente uma luta que é a mesma em seus traços gerais. Por longos períodos a Alta parece firme no poder, porém mais cedo ou mais tarde chega um momento em que, ou perde a fé em si própria ou sua capacidade de governar com eficiência, ou ambas. É então derrubada pela Média, que atrai a Baixa ao seu lado, fingindo lutar pela liberdade e a justiça. Assim que alcança sua meta, a Média joga a Baixa na sua velha posição servil e transforma-se em Alta. Dentro em breve uma nova classe Média se separa dos outros grupos, de um deles ou de ambos, e a luta recomeça. Das três classes, só a Baixa nunca consegue nem êxito temporário na obtenção dos seus ideais. Seria exagero dizer que não se registra na história progresso material. Mesmo hoje, neste período de declínio, o ser humano comum é fisicamente melhor do que há alguns séculos. Mas nenhum progresso em riqueza, nenhuma suavização de maneiras, nenhuma reforma ou revolução jamais aproximou um milímetro 2 igualdade humana. Do ponto de vista da Baixa, nenhuma modificação histórica significou mais do que uma mudança do nome dos amos.
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Pag. 197.
As opiniões das massas, ou a ausência dessas opiniões, são alvo da máxima indiferença. Não é possível dar lhes liberdade intelectual porque não possuem intelecto. Num membro do Partido, por outro lado, não se pode tolerar nem o menor desvio de opinião a respeito do assunto menos importante.
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Pag. 201.
Não há quase necessidade de dizer que os mais sutis praticantes do duplipensar são os que o inventaram e sabem que é um vasto sistema de fraude mental. Em nossa sociedade, os que têm o melhor conhecimento do que sucede são também os que estão mais longe de ver o mundo tal qual é. Em geral, quanto maior a compreensão, maior a ilusão; quanto mais inteligente, menos ajuizado.
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Pag. 202.
Até os nomes dos quatro Ministérios por que somos governados ostentam uma espécie de imprudência na sua deliberada subversão dos fatos. O Ministério da Paz ocupa-se da guerra, o da Verdade, com as mentiras, o do Amor com a tortura e o da Fartura com a fome. Essas contradições não são acidentais, nem resultam de hipocrisia ordinária: são exercícios conscientes de duplipensar. Pois é só reconciliando contradições que se pode reter indefinidamente o poder. De nenhuma outra maneira seria possível quebrar o antigo ciclo. Se é preciso impedir para sempre a igualdade humana — se como a chamamos, a Alta deve conservar permanentemente sua posição — então a condição mental deve ser a de insânia controlada.
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Pag. 203.
Refletiu que ainda não aprendera o segredo final. Compreendia como; ainda não entendia por que. O Capítulo I, como o III, não lhe dissera nada que já não soubesse; apenas siste matizara o conhecimento que já possuía. Mas depois de lê-lo tinha maior certeza de não estar louco. Estar em minoria, mesmo em minoria de um, não era sintoma de loucura. Havia verdade e hayia mentira, e não se está louco porque se insiste em se agarrar à verdade mesmo contra o mundo todo.
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Pag. 204.
Prendendo o cinto, ele foi até a janela. O sol devia ter-se escondido atrás das casas. Já não brilhava no quintal. Os paralelepípedos estavam molhados, como se tivessem sido lavados, e ele teve a impressão de que o céu também fora lavado, tão fresco e pálido era o azul entre as coifas das chaminés. Incansável, a mulher marchava daqui para acolá, arrolhando e desarrolhando a boca com os prendedores, cantando e emudecendo, estendendo mais fraldas, e mais e mais. Ele se indagou se a mulher era lavadeira profissional ou apenas escrava de vinte ou trinta netos. Júlia viera juntar-se a ele; juntos contemplavam, com um certo fascínio, a figura reforçada da prole. Fitando a mulher na sua atitude característica, os braços grossos alcançando o varal, as ancas muito salientes, fortes, como as de uma égua, ele achou, pela primeira vez, que ela era bonita. Antes, nunca lhe havia ocorrido que pudesse ser belo o corpo de uma mulher de cinquenta anos, ampliado a monstruosas dimensões pelos partos sucessivos, depois enrijada, calejada pelo trabalho até ficar grosseira como um nabo muito maduro. Mas, era, e afinal, pensou ele, por que não? O corpo sólido, sem contornos, como um bloco de granito, e a pele vermelha arrepiada, representavam o mesmo, em relação ao corpo de Júlia, que o fruto de uma rosa brava junto à rosa do jardim. Por que seria o fruto considerado inferior à flor?
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Pag. 205.
Era curioso pensar que o céu era o mesmo para todos, na Eurásia como na Lestásia, como na Oceania. E o povo que vivia sob o céu era também muito parecido por toda parte, em todo o mundo, centenas ou milhares de milhões de pessoas exatamente assim, ignorantes da existência dos outros, separadas por muralhas de ódios e mentiras, e no entanto quase exatamente iguais gente que nunca aprendera a pensar mas guardava no coração, no ventre e nos músculos a força que um dia revolucionaria o mundo. Se esperança havia, estava nos proles!
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Pag. 231.
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Por isso estás aqui. Estás aqui porque fracassaste em humildade, em disciplina. Não queres fazer o ato de submissão que é o preço da sanidade. Preferiste ser lunático, minoria de um. Só a mente disciplinada pode enxergar a realidade, Winston.
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Pag. 236.
Réprobos
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Pag. 243.
Ele sabia de antemão o que diria O'Brien. Que o Partido não buscava o poder em seu próprio benefício, mas pelo bem da maioria. Que procurava o poder porque os homens da massa eram criaturas débeis e covardes que não podiam suportar a liberdade nem enfrentar a verdade, e que deviam ser dominados e sistematicamente defraudados por outros, mais fortes que eles. Que para o gênero humano a alternativa era liberdade ou felicidade e que, para a grande maioria, era preferível a felicidade. Que o Partido era o eterno guardião dos fracos, uma seita dedicada fazendo o mal para que o bem pudesse reinar, sacrificando sua própria felicidade à felicidade alheia. O terrível, raciocinou Winston, o terrível era que, dizendo isso, O'Brien estaria sendo sincero.
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Pag. 255.
Ardósia branca
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Pag. 256.
Parecia ter perdido o poder do esforço intelectual, agora que terminara o estímulo da dor. Não estava aborre cido; não tinha o menor desejo de palestra ou distração. Bas tava-lhe estar só, não apanhar nem ser interrogado, ter bas tante que comer e sentir-se limpo de corpo inteiro.
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Pag. 272.
— Às vezes — disse ela — ameaçam a gente com uma coisa... com coisas que não se pode agüentar, não se pode nem pensar. E então a gente diz: "Não faças isso comigo, faze com outra pessoa, faze com Fulano e Sicrano". Mais tarde, talvez finjas que se tratava apenas de um estratagema, mandar que o fizessem a outro, e que não era a sério. Mas não é verdade. Na hora que acontece a gente fala sério. Pensa que não há outro jeito de se salvar, e se dispõe a salvar-se daquele modo. A gente quer que a coisa aconteça ao outro. Não se importa que sofra. Só importa a gente. Só nós temos importância.
Pag. 276.
Tinham jogado oito partidas, ganhando quatro cada um. A irmãzinha, muito pequena para compreender o jogo, fora instalada entre travesseiros na cama, e ria porque via os outros rindo. Durante a tarde toda tinham sido felizes os três, como na primeira infância.
The End
1984 - George Orwell
Pag. 12.
Como poderia se comunicar com o futuro? Era impossível, pela própria natureza. Ou o futuro seria parecido com o presente, caso em que não lhe daria ouvidos, ou seria diferente, e nesse caso a sua situação não teria sentido.
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Pag. 12.
Havia semanas que se preparava para aquele momento, e nunca lhe passara pela cabeça a idéia de precisar de mais que coragem. Escrever seria fácil. Tudo que tinha a fazer era transferir para o papel o intérmino e inquieto monólogo que se desenrolava na sua mente, fazia anos. Naquele momento, todavia, até o monólogo secara.
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Pag. 16.
Insultava o Grande Irmão, denunciava a ditadura do Partido, exigia a imediata conclusão da paz com a Eurásia, advogava a liberdade de palavra, a liberdade de imprensa, a liberdade de reunião, a liberdade de pensamento, gritava histericamente que a revolução fora traída e tudo - numa linguagem rápida, polissilábica, que era uma espécie de paródia do estilo habitual dos oradores do Partido, e até continha palavras em Novilíngua: maior número dessas palavras, com efeito, do que qualquer membro do Partido usaria na vida diária. E todo o tempo, para que não persistissem dúvidas, quanto à realidade oculta pela lenga-lenga especiosa de Goldstein, marchavam por trás de sua cabeça, na teletela, infindas colunas do exército eurasiano fileiras após fileiras de homens sólidos com rostos asiáticos, sem expressão, que vinham até à superfície da placa e sumiam, para ser seguidos por outros exatamente idênticos. O ritmo cavo e monótono das botas dos soldados formavam uma cortina sonora para os balidos de Goldstein.
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Pag. 19.
Winston conseguiu transferir para a moça de cabelo escuro, sentada atrás dele, o ódio que antes dedicava à figura da tela. Belas e vívidas alucinações Ihe atravessaram o cérebro. Haveria de matá-la a golpes de um cajado de borracha: Amarrá-la-ia nua a um poste e a crivaria de flechas como São Sebastião. Possuí-la-ia e a degolaria no momento do gozo. Além disso, percebeu mais claro que antes porque a odiava. Odiava-a porque era jovem, bonita e assexuada, porque desejava ir para a cama com ela, e porque nunca o faria, porque na cinturinha fina e convidativa, que parecia pedir que a segurassem com o braço, só havia a odiosa faixa escarlate, o agressivo símbolo de castidade.
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Pag. 24.
Parsons era colega de Winston no Ministério da Verdade. Era um homem gorducho mas ativo, de estupidez paralisante, uma massa de entusiasmo imbecil — um desses servos dedicados e absolutamente fiéis dos quais dependia a estabilidade do Partido.
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Pag. 25.
— Tem uma chave inglesa? — indagou Winston, apalpando a porca do sifão.
— Chave? — exclamou a sra. Parsons, tornando-se invertebrada outra vez. — Não sei não. Quem sabe as crianças.
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Pag. 27.
Anos atrás — quantos anos? Devia ser uns sete — sonhara estar caminhando num quarto escuro como breu. E alguém, sentado ao seu lado, dissera ao senti-lo passar: "Tornaremos a nos encontrar onde não há treva". Fora dito baixinho, sem ênfase — uma declaração, não uma ordem. E ele continuara sem parar. O curioso é que, na ocasião, no sonho, as palavras não o haviam impressionado maiormente. Somente mais tarde, e aos poucos, é que tinham ganho em significação. Não podia lembrar agora se fora antes ou depois do sonho que vira O'Brien pela primeira vez, nem se lembrava de quando identificara aquela voz como a de O'Brien. Fosse como fosse existia a identificação. O'Brien lhe falara na escuridão.
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Pag 36.
Winston deixou cair os braços e lentamente tornou a encher os pulmões de ar. Seu espírito mergulhou no mundo labiríntico do duplipensar. Saber e não saber, ter consciência de completa veracidade ao exprimir mentiras cuidadosamente arquitetadas, defender simultaneamente duas opiniões opostas, sabendo-as contraditórias e ainda assim acreditando em ambas; usar a lógica contra a lógica, repudiar a moralidade em nome da moralidade, crer na impossibilidade da democracia e que o Partido era o guardião da democracia; esquecer tudo quanto fosse necessário esquecer, trazê-lo à memória prontamente no momento preciso, e depois torná-lo a esquecer; e acima de tudo, aplicar o próprio processo ao processo. Essa era a sutileza derradeira: induzir conscientemente a inconsciência, e então, tornar-se incons ciente do ato de hipnose que se acabava de realizar. Até para compreender a palavra "duplipensar" era necessário usar o duplipensar.
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Pag 37
Elucubrações
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Pag 47
Winston pensou um momento, puxou o falascreve para perto e começou a ditar no estilo familiar do Grande Irmão: estilo ao mesmo tempo militar e pedante, e muito fácil de imitar, por causa da abundância de perguntas retóricas, que ele fazia e ele próprio respondia ("Que lições devemos tirar deste fato, camaradas ? A lição que é também um dos princípios fun damentais do Ingsoc de que", etc., etc.).
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Pag 49
Filólogo
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Pag 54.
Olhando a cara sem olhos, a mandíbula mexendo sem parar, Winston teve a sensação curiosa de não se tratar de um legítimo ente humano, mas de uma espécie de manequim. Não era o cérebro do homem que falava, era a laringe. O que saía da boca era constituído de palavras, mas não era fala genuína: era um barulho inconsciente, como o grasnido dum pato.
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Pag 55.
Carecia de discrição, indiferença, e de estupidez salvadora. Não se podia dizer que fosse ortodoxo. Acreditava nos princípios do Ingsoc, venerava o Grande Irmão, rejubilava-se com as vitórias, odiava os hereges, não apenas com sinceridade como com zelo incansável e informação recente, de que os militantes comuns não se aproximavam. Todavia, um ligeiro ar de má fama estava sempre presente nele. Dizia coisas que era melhor calar, lia livros demais, freqüentava o Café Castanheira, santuário de pintores e músicos. Não havia lei, nem implícita, contra a fre qüência do Café Castanheira; ainda assim, a casa era de maus presságios. Os antigos e desacreditados líderes do Partido costumavam reunir-se lá, antes de serem expurgados. Dizia-se que o próprio Goldstein fora visto algumas vezes lá, anos e décadas passadas. Não era difícil prever o fim de Syme. No entanto era fato que se Syme percebesse, por três segundos que fosse, a natureza das opiniões secretas de Winston, instan taneamente o denunciaria à Polícia do Pensamento. Aliás, era o que faria qualquer um: Syme mais que os outros, porém. O zelo não bastava. Ortodoxia era inconsciència.
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Pag 56.
Quérulo
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Pag 58.
Meditava, ressentido, na textura física da vida. Teria sido sempre assim? Teria a comida tido sempre o mesmo gosto? Olhou em torno da cantina. Um salão de teto baixo, paredes sujas do contacto de inúmeros corpos; maltratadas cadeiras e mesas de metal, tão juntinhas que os cotovelos se tocavam. Colheres arcadas, bandejas trincadas, rústicas xícaras brancas; gordurentas todas as superfícies, sujeira em cada frincha; e um cheiro azedo, composto de gim ordinário, café ruim, guisado metálico e roupa suja. Havia sempre, no estô mago e na pele, uma espécie de protesto, a sensação de que se perdera, para um gatuno, algo a que se tinha direito. Era fato que não tinha recordação de nada muito diferente. Em todas as épocas que lembrava com precisão, nunca houvera suficiente para comer, nunca tivera meias ou roupa branca que não fossem esburacadas, mobília que não fosse capenga e gasta; e cômodos mal aquecidos, trens subterrâneos atulhados, casas caindo aos pedaços, pão escuro, chá raro, café nojento, cigarros insufici entes - nada barato e abundante, exceto gim sintético. E conquanto as coisas piorassem com o envelhecimento do corpo, não era isto um sinal de ser diferente a ordem natural das coisas, quando o coração se confrangia ante o desconforto, a sujeira e a escassez, os invernos intermináveis, as meias pega josas, os elevadores que nunca funcionavam, a água fria, o sabão áspero, os cigarros que se desfaziam, a comida de sabor mau e estranho? Por que achar tudo isso intolerável, a menos que se tivesse uma espécie de lembrança ancestral de coisas outrora diferentes ?
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Pag 59.
Como era fácil, pensou Winston, acreditar que o tipo físico considerado ideal pelo Partido rapazes altos e musculosos, donzelas de grandes seios, louras vi çosas queimadas de sol, alegres - existisse e mesmo predominasse. Na verdade, até onde podia julgar, a maioria, na Pista N.º 1, era de gente miúda, morena, mal favorecida.
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Pag 63
Por um minuto foi difícil continuar. Fechou os olhos e apertou com os dedos, tentando afastar a visão que insistia em voltar. Tinha uma tentação quase indomável de berrar um bando de palavras indecentes a pleno pulmão. Ou bater a cabeça na parede, dar um pontapé na mesa ou atirar o tinteiro pela janela fazer algo violento, doloroso ou ruidoso que pudesse apagar a lembrança que o atormentava.
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Pag 65
Clister
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Pag 69.
SE E HÁ ESPERANÇA, ESCREVEU WINSTON, ESTÁ NOS PROLES. Se esperança houvesse, devia estar nos proles, porque só neles, naquela massa desdenhada, formigante, 85% da população da Oceania, podia se gerar força suficiente para destruir o Partido. O Partido não poderia ser derribado de dentro. Seus inimigos, se é que tinha inimigos, não tinham modo de se reunir, nem mesmo de se identificar. Mesmo que existisse a legendária Fraternidade, como era possível que existisse, era inconcebível que os seus membros pudessem jamais se reunir em grupos maiores que dois ou três. A rebelião revelava-se num olhar, numa inflexão da voz; no máximo, num cochicho ocasional. Mas os proles, se de algum modo adquirissem cons ciência do seu poderio, não precisariam conspirar. Bastava-lhes levantarem-se e sacudir-se, como um cavalo sacode as moscas. Se o quisessem, poderiam demolir o Partido no dia seguinte. Mais cedo ou mais tarde, isso lhes haveria de ocorrer. No entanto!...
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Pag. 70.
Escreveu:
Não se revoltarão enquanto não se tornarem conscientes, e não se tornarão conscientes enquanto não se rebelarem.
Refletiu que a frase poderia ser quase a transposição de um dos textos básicos do Partido. O Partido proclamava, na turalmente, ter libertado os proles da servidão. Antes da Revo lução eram oprimidos pelos capitalistas, tinham sido chicoteados e submetidos à fome, as mulheres forçadas a trabalhar nas minas de carvão (na verdade, as mulheres ainda trabalhavam nas minas), as crianças vendidas às fábricas com a idade de seis anos. Simultaneamente, fiel aos princípios do duplipensar, o Partido ensinara que os proles eram naturalmente inferiores, que deviam ficar em sujeição, como animais, pela aplicação de algumas regras simples. Pouquíssimo se sabia a respeito dos proles. Não era necessário saber muito. Contanto que conti nuassem a trabalhar e se reproduzir não tinham importância suas outras atividades. Abandonados a si mesmos, como gado solto nas planuras argentinas, haviam regressado a um modo de vida que lhes parecia natural, uma espécie de tradição ances tral. Nasciam, cresciam nas sarjetas, iam para o trabalho aos doze, atravessavam um breve período de floração da beleza e do desejo sexual, casavam-se aos vinte, atingiam a maturidade aos trinta, e em geral, morriam aos sessenta. O trabalho físico pesado, o trato da casa e dos filhos, as briguinhas com a vizi nhança, o cinema, o futebol, a cerveja e, acima de tudo, o jogo, enchiam-lhes os horizontes. Mantê-los sob controle não era difícil. Alguns agentes da Polícia do Pensamento estavam sempre entre eles, soltando boatos, marcando e eliminando os poucos indivíduos julgados capazes de se tornar perigosos; mas não se tentava doutriná-los com a ideologia do Partido. Não era desejável que os proles tivessem sentimentos políticos definidos. Tudo que se lhes exigia era uma espécie de patrio tismo primitivo ao qual se podia apelar sempre que fosse ne cessário levá-los a aceitar ações menores ou maior expediente de trabalho. E mesmo quando ficavam descontentes, como às vezes acontecia, o descontentamento não os conduzia a parte alguma porque, não tendo idéias gerais, só podiam focalizar a animosidade em ridículas reivindicações específicas. Os males maiores geralmente lhes fugiam à observação. A grande maioria dos proles nem tinha teletelas em casa. Até a polícia civil inter feria pouquíssimo com eles. Havia enorme criminalidade em Londres! todo um mundo subterrâneo de ladrões, bandidos, prostitutas, vendedores de narcóticos e contraventores de todo tipo; mas como tudo se passava entre os próprios proles, não tinha importância. Em todas as questões morais, permitia-se lhes obedecerem ao código ancestral. O puritanismo sexual do Partido não lhes era imposto. A promiscuidade não era punida; e o divórcio era permitido. Nesse particular, até a adoração religiosa teria sido permitida se os proles demonstrassem algum sintoma de desejá-la ou dela carecerem. Ninguém desconfiava deles. Como dizia o lema do Partido: "Os proles e os animais são livres".
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Pag 73.
De repente achou que as únicas coisas verdadeiramente típicas da vida moderna não eram nem a crueldade nem a insegurança, mas apenas a nudez, a miséria, o desânimo. Olhando-se em torno, verificava-se que a vida não apenas diferia das mentiras que provinham das teletelas, como também dos ideais que o Partido buscava atingir. Muitas atividades cotidianas, mesmo para um membro do Par tido, eram neutras e não políticas, questão de cumprir tarefas tediosas, lutar por um lugar no trem subterrâneo, remendar uma meia gasta, esmolar uma pastilha de sacarina, guardar uma ponta de cigarro. O ideal criado pelo Partido era enorme, terrí vel, luzidio - um mundo de aço e concreto, de monstruosas máquinas e armas aterrorizantes - uma nação de guerreiros e fanáticos, marchando avante em perfeita unidade, todos tendo os mesmos pensamentos e gritando as mesmas divisas <- trezen tos milhões com a mesma cara - trabalhando perpetuamente, lutando, triunfando, perseguindo. A realidade eram cidades caindo em ruínas, escuras, onde o populacho subnutrido peram bulava com sapatos furados, vivendo em remendadas casas do século dezenove que sempre cheiravam a repolho e latrinas de mau funcionamento.
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Pag 75.
Lábios negróides
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Pag. 78.
O bom senso era a heresia das heresias. E o que mais aterrorizava não era que matassem o cidadão por pensar diferente, mas a possibilidade de terem razão. Por que, afinal de contas, como sabemos que dois e dois são qua tro? Ou que existe a lei da gravidade? Ou que o passado é inalterável? Se tanto o passado como o mundo externo só existem na mente, e se a mente em si é controlável...então?
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Pag. 79.
Eles estavam errados! O óbvio, o tolo e o verdadeiro tinham que ser defendidos. Os truísmos são verdadeiros, esse é que é o fato! O mundo sólido existe, suas leis não mudam. As pedras são duras, a água é líquida, os objetos largados no ar caem sobre a crosta da terra. Com a impressão de falar com O'Brien e também de estar fixando um importante axioma, ele es creveu:
A liberdade é a liberdade de dizer que dois e dois são quatro. Admitindo-se isto, tudo o mais decorre.
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Pag. 83.
A Loteria, com seus enormes prêmios semanais, era o acontecimento público a que os proles davam a maior atenção. Era provável que houvesse milhões de proles para quem a Loteria era o principal, se não o único, motivo de continuar a viver. Era o seu deleite, sua loucura, seu anódino, seu estimulante intelectual. Quando se tratava de Loteria, até a gente que mal sabia ler e escrever fazia intrincados cálculos e fantásticas proezas de memória. Havia um exército de homens que ganhava a vida graças à simples venda de sistemas, previsões e amuletos.
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Pag. 90.
"Antes da Revolução a vida era melhor que agora?" deixaria de ser respondível para todo o sempre. De fato, porém, já era irrespondível, pois alguns dispersos sobreviventes do mundo antigo eram incapazes de comparar uma época com outra. Lembravam-se de um milhão de coisas inúteis, duma briga com um colega, a busca de uma bomba de bicicleta, a expressão no rosto de uma irmã falecida, o rodopio da poeira numa manhã de vento, setenta anos atrás: mas todos os fatos relevantes já estavam fora do alcance da sua visão. Eram como a formiga, que pode ver pequenos objetos, mas não enxerga os grandes. E quando a memória falhava, e os registros escritos eram falsificados era forçoso aceitar a assertiva do Partido de que tinham melhorado as condições da vida humana, porque não existia, nem jamais poderia existir, qualquer padrão de comparação.
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Pag. 98.
Ele tornou a tentar, com um pouco mais de êxito, conjurar a imagem de O'Brien. "Tornaremos a nos encontrar onde não há treva", dissera O'Brien. Ele sabia o que significavam aquelas palavras, ou acreditava saber. O lugar onde não havia trevas era o futuro imaginário que nunca se podia ver mais que, pelo pensamento, se podia partilhar misticamente. Mas com a voz da tela a lhe azucrinar os ouvidos, não era possível continuar o fio dos pensamentos.
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Pag. 100.
Uma emoção estranha agitou o coração de Winston. Diante dele estava um inimigo que queria matá-lo; mas diante dele, também, havia uma criatura humana, sofrendo, talvez com um osso quebrado. Já se adiantara instintivamente para ajudá-la. No momento em que a vira cair sobre o braço vendado, sentira como que uma dor no próprio corpo.
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Pag. 112.
Winston estava embriagado pela doçura do ar e o verdor das folhas. Já na caminhada da estação, à luz do sol de maio, se sentira sujo e estiolado, uma criatura de quatro paredes, com os poros entupidos do pó fuliginoso de Londres. Ocorreu-lhe que até aquele momento ela provavelmente não o vira a plena luz do dia. Chegaram à árvore caída de que ela havia falado. A moça saltou sobre o tronco e forcejou abrindo uma touceira, num lugar onde não parecia haver caminho. Quando Winston a seguiu, achou-se numa clareira natural, um pequeno recôndito atapetado de relva e completamente cercado de altos freixos novos, como uma parede. A moça parou e voltou-se.
— Aqui estamos — anunciou.
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Pag. 118.
Tudo quanto cheirasse a corrupção o enchia sempre de ardentes esperanças. Quem poderia saber? O Partido talvez estivesse podre sob a crosta superior; seu culto da severidade e a autonegação podiam ser apenas uma máscara da iniquidade. Se pudesse infeccioná-los todos com lepra ou sífilis, com que prazer o faria! Tudo que servisse para apodrecer, debilitar, minar!
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Pag. 125.
Ela pôs-se a discorrer sobre o assunto. Com Júlia, tudo girava em torno da sua própria sexualidade. Assim que este assunto vinha à baila, de algum modo, mostrava-se muito informada. Ao contrário de Winston, percebera o sentido íntimo do puritanismo sexual do Partido. Não era apenas pelo fato do instinto sexual criar um mundo próprio, fora do controle do Partido e que portanto devia ser destruído, se possível. O mais importante era a privação sexual que provocava a histeria, desejável porque podia ser transformada em febre guerreira e adoração dos chefes. Ou como explicava Júlia:
— Quando amas, gastas energia; depois, ficas contente, satisfeito, e não te importas com coisa alguma. Eles não gostam que te sintas assim. Querem que estoures de energia o tempo todo. Todo esse negócio de marchar para cima e para baixo, dar vivas, agitar bandeirolas, é sexo que azedou. Se estás contente contigo mesmo, por que havias de admirar o Grande Irmão, os Planos Trienais e os Dois Minutos de ódio e todo o resto da maldita burrice?
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Pag. 128.
Mas isso não faz muita diferença. Enquanto os humanos permanecerem humanos, a vida e a morte são a mesma coisa.
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Pag. 131.
Mas naquele momento a multidão os apertou e, acidentalmente, as mãos se encontraram. Ela apertou-lhe ligeiramente as pontas dos dedos, num gesto que parecia pedir não desejo mas afeto.
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Pag. 141.
Durante o mês de junho encontraram-se quatro, cinco, seis... sete vezes. Winston abandonara o hábito de beber gim a toda hora. Parecia não precisar mais dele. Engordara, a variz ulcerada sarara, deixando apenas uma nódoa parda na pele, acima do tornozelo; não sofria mais de acessos de tosse de madrugada. O processo da vida cessara de ser intolerável, e não sentia mais ímpetos de fazer caretas para a teletela nem de gritar nomes feios. Agora que possuíam um esconderijo seguro, quase um lar, já não lhes parecia tão mau encontrar-se freqüentemente, e apenas por algumas horas. O que importava era a existência do quarto sobre a loja do antiquário. Saber que estava lá, inviolado, era quase que o mesmo que estar nele. O quarto era um mundo, uma redoma do passado, onde sobreviviam animais extintos.
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Pag. 142.
Winston e Júlia sabiam — de modo que nunca baniam do espírito — que não podia durar muito o que estava acontecendo. Havia ocasiões em que a morte vindoura parecia tão palpável quanto a cama que ocupavam, e então se agarravam com uma espécie de desesperada sensualidade, como uma alma danada se agarra ao último bocado de prazer quando faltam apenas cinco minutos para soar a hora. Mas havia também ocasiões em que tinham a ilusão não apenas de segurança como de permanência. Tinham a impressão de que, enquanto estivessem naquele quarto, nenhum mal lhes poderia advir. Chegar até lá era difícil e perigoso, mas o quarto era um santuário. Era como se Winston olhasse dentro do peso de papel, com sensação de ser possível penetrar aquele mundo de vidro, e que, uma vez dentro dele, o tempo se imobilizaria. Com freqüência se entregavam a sonhos escapistas conscientes. A sorte haveria de ajudá-los, indefinidamente, e continuariam a aventura até o fim da vida natural. Ou Katharine morreria e, com auxílio de manobras sutis, Winston e Júlia conseguiriam casar. Ou então se suicidariam juntos. Ou desapareceriam, alterando as fisionomias de modo que ninguém os reconhecesse, aprenderiam a falar com sotaque proletário, arranjariam emprego numa fábrica e viveriam até o fim numa ruela obscura. Tudo tolice, como bem sabiam. Na verdade, não havia fuga.
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Pag. 143.
Na verdade, não havia fuga. Não tinham intenção de executar nem o único plano praticável: o suicídio. Viver dia a dia, semana a semana, esticando um presente que não tinha futuro, parecia um instinto irresistível, como os nossos pulmões sempre procuram inspirar, enquanto existe ar.
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Pag. 146.
— Não adiantou nada, porque a joguei fora uns minutos depois. Porém se a mesma coisa acontecesse hoje, eu guardaria a prova.
— Ora, eu não! Estou disposta a correr riscos, mas só por coisas que valham a pena, não por causa de pedacinhos de papel. Que poderias fazer com o recorte, se o guardasses?
— Pouca coisa, talvez. Mas era prova. Poderia ter semeado algumas dúvidas, aqui e ali, supondo que ousasse mostrá-lo a alguém. Não creio que possamos alterar coisa alguma nesta vida. Mas posso imaginar pequenos nódulos de resistência brotando aqui e ali... pequenos grupos de gente que se reúne, e vão crescendo, e deixando algumas notas, de modo que a geração seguinte possa continuar a obra.
— Não estou interessada na próxima geração, querido. Estou interessada em nós.
— És rebelde só da cintura para baixo — disse ele.
Ela achou esta frase excepcionalmente jocosa e atirou os braços em torno dele, deliciada.
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Pag. 147.
Falando com ela, Winston percebeu como era fácil aparentar ortodoxia, sem ter a menor noção do que fosse ortodoxia. De certo modo, o ponto de vista do Partido se impunha com mais êxito às pessoas incapazes de compreendê-lo. Aceitavam as mais flagrantes violações da realidade porque jamais percebiam inteiramente a enormidade do que se lhes exigia, e não estavam suficientemente interessadas para observar o que acontecia. Graças à falta de compreensão permaneciam sãs de juízo. Apenas engoliam tudo, e o que engoliam não lhes fazia mal, porque não deixava resíduo, do mesmo modo que um grão de milho passa, sem ser digerido, pelo corpo de uma ave.
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Pag. 153.
Chocarreiramente
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Pag. 153.
A garota apanhou e ficou a olhar, feito água parada
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Pag. 157.
Não podiam alterar os sentimentos do indivíduo: nem ele próprio o consegue, mesmo que o deseje. Podiam desnudar, nos mínimos detalhes, tudo quanto houvesse feito, dito ou pensado; mas o imo do coração, cujo funcionamento é um mistério para o próprio indivíduo, continuava inexpugnável.
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Pag. 163.
Havia uma caixa de cigarros, de prata, sobre a mesa. Com ar distraído, O'Brien ofereceu-a aos outros, serviu-se e depois levantou-se, pondo-se a passear de um lado para outro da sala, como se pensasse melhor de pé.
Pag. 165.
Mais do que de força, dava a impressão de confiança e de compreensão, colorida de ironia. Por mais sério que fosse, não tinha nada da parcialidade estreita que distingue o fanático. Quando falava de assassinio, suicídio, moléstias venéreas, membros amputados e rostos alterados, era com um ligeiro ar de zombaria. "Isto é inevitável", parecia dizer o seu tom de voz. "Isto é o que temos a fazer, sem piedade. Mas não é o que faremos quando a vida de novo valer a pena ser vivida". Uma onda de admiração, quase de adoração, fluiu de Winston. Esquecera-se da figura remota de Goldstein. Quando se olhava para os ombros poderosos de O'Brien a sua cara de feições tão maciças, tão feia e no entanto tão civilizada, era impossível acreditar que pudesse ser derrotado. Não havia estratagema que ele não pudesse vencer, nenhum perigo que não pudesse prever. Até Júlia parecia impressionada. Deixara o cigarro apagar e agora escutava atentamente. O'Brien continuou:
— Já ouviste boatos da existência da Fraternidade. Sem dúvida já tens idéia dela. Imaginaste, provavelmente, um vasto mundo clandestino de conspiradores, reunindo-se secretamente, em porões, rabiscando mensagens nas paredes, reconhecendo-se por meio de códigos ou gestos especiais. Nada disso existe. Os membros da Fraternidade não têm meio algum de se reconhecer e é impossível a qualquer um conhecer a identidade de mais que outros poucos. O próprio Goldstein, se caísse nas mãos da Polícia do Pensamento, não poderia fornecer uma lista completa dos conspiradores, nem informação que permitisse compilá-la. Não existe essa lista. A Fraternidade não pode ser eliminada porque não é uma organização no sentido comum da palavra. Nada a cimenta, exceto uma idéia, uma idéia indestrutível.
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Pag. 173
Júlia não devia demorar; enquanto não viesse, leria o livro. Sentou-se na poltrona esfiapada e abriu a pasta.
Um pesado volume negro, numa encadernação tosca, sem nome nem título na capa. O tipo também parecia ligeiramente irregular. As páginas estavam gastas nas margens, e se destacavam com facilidade, como se o livro tivesse passado por muitas mãos. No frontispício havia o título:
TEORIA E PRÁTICA DO COLETIVISMO
OLIGÁRQUICO
por
Emmanuel Goldstein
Winston pôs-se a ler:
CAPÍTULO I
Ignorância é Força
Desde que se começou a escrever a história, e prova velmente desde o fim do Período Neolítico, tem havido três classes no mundo, Alta, Média e Baixa. Têm-se subdividido de muitas maneiras, receberam inúmeros nomes diferentes, e sua relação quantitativa, assim como sua atitude em relação às outras, variaram segundo as épocas; mas nunca se alterou a estrutura essencial da sociedade. Mesmo depois de enormes comoções e transformações aparentemente irrevogáveis, o mesmo diagrama sempre se restabeleceu, da mesma forma que um giroscópio em movimento sempre volta ao equilíbrio, por mais que seja empurrado deste ou daquele lado.
Os objetivos desses três grupos são inteiramente irreconciliáveis…
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Pag. 176.
Todos os territórios disputados contêm valiosos minerais, e alguns produzem importantes produtos vegetais, tais como borracha, que nos climas mais frios é necessário sintetizar por métodos relativamente caros. Acima de tudo, porém, contêm uma prodigiosa reserva de mão-de-obra barata. Quem quer que controle a África equatorial, ou os países do Oriente Médio ou a Índia meridional, ou o arquipélago indonésio, dispõe também de massas de dezenas ou centenas de milhões de peões diligentes e mal pagos. Os habitantes dessas regiões, reduzidos mais ou menos abertamente à condição de escravos, passam continuamente de conquistador a conquistador e são gastos, como o carvão ou o petróleo, na corrida para produzir mais armamentos, capturar mais território, controlar mais braços, para produzir mais armamentos, para capturar mais território e assim infinitamente.
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Pag. 177.
O objetivo primário da guerra moderna (segundo os princípios do duplipensar, essa meta é simultaneamente reconhecida e não reconhecida pelos cérebros orientadores do Partido Interno) é usar os produtos da máquina sem elevar o padrão de vida geral. Desde o fim do século dezenove, foi latente na sociedade industrial o problema de dar fim ao excesso de artigos de consumo. Atualmente, que poucos seres humanos têm bastante para comer, esse problema evidentemente não urge, e assim poderia vir a ser, mesmo sem a intervenção de um processo destruidor artificial. O mundo de hoje é um planeta nu, faminto e dilapidado, em comparação com o que existia antes de 1914, e ainda mais se comparado com o futuro imaginário aguardado pelos seus habitantes daquela era. No começo do século vinte, a visão de uma sociedade futura incrivelmente rica, repousada, ordeira e eficiente um refulgente mundo antissético de vidro, aço e concreto branco de neve fazia parte da consciência de quase toda pessoa alfabetizada. A ciência e a tecnologia se desenvolviam num ritmo prodigioso, e parecia natural imaginar que continuassem se desenvolvendo. Isso não ocorreu, todavia, em parte por causa do empobrecimento causado por longa série de guerras e revoluções, em parte porque o progresso científico e técnico dependia do hábito empírico do raciocínio, que não podia sobreviver numa sociedade estritamente regimentada. No seu conjunto, o mundo é hoje mais primitivo do que era cinquenta anos atrás. Certas zonas atrasadas progrediram, e vários dispositivos, sempre ligados à guerra e à espionagem policial, foram desenvolvidos, mas já não há experiência nem invenção, e nunca foram completamente reparados os estragos da guerra atômica de 1950 e pouco. Não obstante, persistem os perigos inerentes à máquina. Desde o momento em que a máquina surgiu, tornou-se claro a todos que sabiam raciocinar que desaparecera em grande parte a necessidade do trabalho braçal do homem e, portanto, a da desigualdade humana. Se a máquina fosse deliberadamente utilizada com esse propósito, a fome, o excesso de trabalho, a sujeira, o analfabetismo e a doença poderiam ter sido eliminados em algumas gerações. E na verdade, sem ter sido usada com esse propósito, porém por uma espécie de processo automático - produzindo riqueza que às vezes se tornava impossível deixar de distribuir - a máquina elevou grandemente o padrão de vida do ser humano comum, num período de uns cinqüenta anos, ao fim do século dezenove e no começo do vinte.
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Pag. 178.
Tornou-se também claro que o aumento total da riqueza ameaça a destruição - com efeito, de certo modo era a destruição — de uma sociedade hierárquica. Num mundo em que todos trabalhassem pouco, tivessem bastante que comer, morassem numa casa com banheiro e refrigerador, e possuíssem automóvel ou mesmo avião, desapareceria a mais flagrante e talvez mais importante forma de desigualdade. Generalizando-se, a riqueza não conferia distinção. Era possível, sem dúvida, imaginar uma sociedade em que a riqueza, no sentido de posse pessoal de bens e luxos, fosse igualmente distribuída, ficando poder nas mãos de uma pequena casta privilegiada. Mas a prática tal sociedade não poderia ser estável. Pois se o lazer na e a segurança fossem por todos fruídos, a grande massa de seres humanos normalmente estupidificada pela miséria aprenderia a ler e aprenderia a pensar por si; e uma vez isso acontecesse, mais cedo ou mais tarde veria que não tinha função a minoria privilegiada, e acabaria com ela. De maneira permanente, uma sociedade hierárquica só é possível na base da pobreza e da ignorância. Regressar ao passado agrícola, como imaginaram alguns pensadores no começo do século vinte, não era solução praticável.
Pag. 179.
O essencial da guerra é a destruição, não necessariamente de vidas humanas, mas dos produtos do trabalho humano. A guerra é um meio de despedaçar, ou de libertar na estratosfera, ou de afundar nas profundezas do mar, materiais que doutra forma teriam de ser usados para tornar as massas demasiado confortáveis e portanto, com o passar do tempo inteligentes. Mesmo quando as armas de guerra não são destruídas, sua manufatura ainda é um modo conveniente de gastar mão-de-obra sem produzir nada que se possa consumir. Uma Fortaleza Flutuante, por exemplo, contém trabalho suficiente para construir várias centenas de navios cargueiros. Depois de algum tempo é desmantelada, por obsoleta, sem ter trazido benefício material a ninguém, e com novo e enorme esforço, constrói-se outra. Em princípio, o esforço bélico é sempre planejado de maneira a consumir qualquer excesso que possa existir depois de satisfeitas as necessidades mínimas da população. Na prática, as necessidades da população são sempre subestimadas, e o resultado é haver uma escassez crônica de metade dos essenciais, mas isto é considerado vantagem. É uma política consciente manter perto do sofrimento até os grupos favorecidos porquanto o estado geral da escassez aumenta a importância dos pequenos privilégios e assim amplia a distinção entre um grupo e outro. Pelos padrões do início do século vinte, até mesmo um membro do Partido Interno leva vida austera e laboriosa. Não obstante, os poucos luxos de que goza, o apartamento espaçoso e bem mobiliado, a melhor qualidade da sua roupa, a superioridade da sua comida, bebida e fumo, seus dois ou três criados, seu automóvel ou helicóptero particular, o colocam numa esfera diferente de um membro do Partido Externo, que por sua vez tem vantagens semelhantes em comparação com as massas submersas a que chamamos "proles". A atmosfera social é de uma cidade sitiada, onde a posse de um pedaço de carne de cavalo diferencia entre a riqueza e a pobreza. E, ao mesmo tempo, a consciência de estar em guerra e portanto em perigo, faz parecer natural a entrega de todo poder a uma pequena casta: é uma inevitável condição de sobrevivência.
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Pag. 181.
E mesmo o progresso tecnológico só se verifica quando os seus produtos podem ser, de alguma forma, utilizados para limitar a liberdade humana.
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Pag. 187.
Winston parou de ler por um momento. Na distância remota uma bomba-foguete estourou. Ainda não sumira a deliciosa sensação de se sentir só com o livro proibido, num quarto sem teletela. A solidão e a segurança eram sensações físicas, de certo modo misturadas com o cansaço do seu corpo, a maciez da cadeira, a brisa gentil que tocava o rosto, soprando pela janela. O livro fascinava ou, mais exatamente, dava-lhe nova tranquilidade. De certo modo, nada lhe dizia de novo, mas isso fazia parte do seu atrativo. Dizia o que ele diria, se lhe fosse possível pôr ordem nos seus pensamentos desataviados. Era produto de um cérebro semelhante ao seu, porém enormemente mais poderoso, mais sistemático, menos medroso. Ele percebia que os melhores livros são os que dizem o que já se sabe.
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Pag. 189.
Os objetivos desses três grupos são inteiramente irreconciliáveis. O objetivo da Alta é ficar onde está. O da Média é trocar de lugar com a Alta. E o objetivo da Baixa, quando tem objetivo - pois é característica constante da Baixa viver tão esmagada pela monotonia do trabalho cotidiano que só intermitentemente tem consciência do que existe fora de sua vida - é abolir todas as distinções e criar uma sociedade em que todos sejam iguais. Assim, por toda a história, trava-se repetidamente uma luta que é a mesma em seus traços gerais. Por longos períodos a Alta parece firme no poder, porém mais cedo ou mais tarde chega um momento em que, ou perde a fé em si própria ou sua capacidade de governar com eficiência, ou ambas. É então derrubada pela Média, que atrai a Baixa ao seu lado, fingindo lutar pela liberdade e a justiça. Assim que alcança sua meta, a Média joga a Baixa na sua velha posição servil e transforma-se em Alta. Dentro em breve uma nova classe Média se separa dos outros grupos, de um deles ou de ambos, e a luta recomeça. Das três classes, só a Baixa nunca consegue nem êxito temporário na obtenção dos seus ideais. Seria exagero dizer que não se registra na história progresso material. Mesmo hoje, neste período de declínio, o ser humano comum é fisicamente melhor do que há alguns séculos. Mas nenhum progresso em riqueza, nenhuma suavização de maneiras, nenhuma reforma ou revolução jamais aproximou um milímetro 2 igualdade humana. Do ponto de vista da Baixa, nenhuma modificação histórica significou mais do que uma mudança do nome dos amos.
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Pag. 197.
As opiniões das massas, ou a ausência dessas opiniões, são alvo da máxima indiferença. Não é possível dar lhes liberdade intelectual porque não possuem intelecto. Num membro do Partido, por outro lado, não se pode tolerar nem o menor desvio de opinião a respeito do assunto menos importante.
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Pag. 201.
Não há quase necessidade de dizer que os mais sutis praticantes do duplipensar são os que o inventaram e sabem que é um vasto sistema de fraude mental. Em nossa sociedade, os que têm o melhor conhecimento do que sucede são também os que estão mais longe de ver o mundo tal qual é. Em geral, quanto maior a compreensão, maior a ilusão; quanto mais inteligente, menos ajuizado.
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Pag. 202.
Até os nomes dos quatro Ministérios por que somos governados ostentam uma espécie de imprudência na sua deliberada subversão dos fatos. O Ministério da Paz ocupa-se da guerra, o da Verdade, com as mentiras, o do Amor com a tortura e o da Fartura com a fome. Essas contradições não são acidentais, nem resultam de hipocrisia ordinária: são exercícios conscientes de duplipensar. Pois é só reconciliando contradições que se pode reter indefinidamente o poder. De nenhuma outra maneira seria possível quebrar o antigo ciclo. Se é preciso impedir para sempre a igualdade humana — se como a chamamos, a Alta deve conservar permanentemente sua posição — então a condição mental deve ser a de insânia controlada.
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Pag. 203.
Refletiu que ainda não aprendera o segredo final. Compreendia como; ainda não entendia por que. O Capítulo I, como o III, não lhe dissera nada que já não soubesse; apenas siste matizara o conhecimento que já possuía. Mas depois de lê-lo tinha maior certeza de não estar louco. Estar em minoria, mesmo em minoria de um, não era sintoma de loucura. Havia verdade e hayia mentira, e não se está louco porque se insiste em se agarrar à verdade mesmo contra o mundo todo.
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Pag. 204.
Prendendo o cinto, ele foi até a janela. O sol devia ter-se escondido atrás das casas. Já não brilhava no quintal. Os paralelepípedos estavam molhados, como se tivessem sido lavados, e ele teve a impressão de que o céu também fora lavado, tão fresco e pálido era o azul entre as coifas das chaminés. Incansável, a mulher marchava daqui para acolá, arrolhando e desarrolhando a boca com os prendedores, cantando e emudecendo, estendendo mais fraldas, e mais e mais. Ele se indagou se a mulher era lavadeira profissional ou apenas escrava de vinte ou trinta netos. Júlia viera juntar-se a ele; juntos contemplavam, com um certo fascínio, a figura reforçada da prole. Fitando a mulher na sua atitude característica, os braços grossos alcançando o varal, as ancas muito salientes, fortes, como as de uma égua, ele achou, pela primeira vez, que ela era bonita. Antes, nunca lhe havia ocorrido que pudesse ser belo o corpo de uma mulher de cinquenta anos, ampliado a monstruosas dimensões pelos partos sucessivos, depois enrijada, calejada pelo trabalho até ficar grosseira como um nabo muito maduro. Mas, era, e afinal, pensou ele, por que não? O corpo sólido, sem contornos, como um bloco de granito, e a pele vermelha arrepiada, representavam o mesmo, em relação ao corpo de Júlia, que o fruto de uma rosa brava junto à rosa do jardim. Por que seria o fruto considerado inferior à flor?
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Pag. 205.
Era curioso pensar que o céu era o mesmo para todos, na Eurásia como na Lestásia, como na Oceania. E o povo que vivia sob o céu era também muito parecido por toda parte, em todo o mundo, centenas ou milhares de milhões de pessoas exatamente assim, ignorantes da existência dos outros, separadas por muralhas de ódios e mentiras, e no entanto quase exatamente iguais gente que nunca aprendera a pensar mas guardava no coração, no ventre e nos músculos a força que um dia revolucionaria o mundo. Se esperança havia, estava nos proles!
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Pag. 231.
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Por isso estás aqui. Estás aqui porque fracassaste em humildade, em disciplina. Não queres fazer o ato de submissão que é o preço da sanidade. Preferiste ser lunático, minoria de um. Só a mente disciplinada pode enxergar a realidade, Winston.
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Pag. 236.
Réprobos
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Pag. 243.
Ele sabia de antemão o que diria O'Brien. Que o Partido não buscava o poder em seu próprio benefício, mas pelo bem da maioria. Que procurava o poder porque os homens da massa eram criaturas débeis e covardes que não podiam suportar a liberdade nem enfrentar a verdade, e que deviam ser dominados e sistematicamente defraudados por outros, mais fortes que eles. Que para o gênero humano a alternativa era liberdade ou felicidade e que, para a grande maioria, era preferível a felicidade. Que o Partido era o eterno guardião dos fracos, uma seita dedicada fazendo o mal para que o bem pudesse reinar, sacrificando sua própria felicidade à felicidade alheia. O terrível, raciocinou Winston, o terrível era que, dizendo isso, O'Brien estaria sendo sincero.
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Pag. 255.
Ardósia branca
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Pag. 256.
Parecia ter perdido o poder do esforço intelectual, agora que terminara o estímulo da dor. Não estava aborre cido; não tinha o menor desejo de palestra ou distração. Bas tava-lhe estar só, não apanhar nem ser interrogado, ter bas tante que comer e sentir-se limpo de corpo inteiro.
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Pag. 272.
— Às vezes — disse ela — ameaçam a gente com uma coisa... com coisas que não se pode agüentar, não se pode nem pensar. E então a gente diz: "Não faças isso comigo, faze com outra pessoa, faze com Fulano e Sicrano". Mais tarde, talvez finjas que se tratava apenas de um estratagema, mandar que o fizessem a outro, e que não era a sério. Mas não é verdade. Na hora que acontece a gente fala sério. Pensa que não há outro jeito de se salvar, e se dispõe a salvar-se daquele modo. A gente quer que a coisa aconteça ao outro. Não se importa que sofra. Só importa a gente. Só nós temos importância.
Pag. 276.
Tinham jogado oito partidas, ganhando quatro cada um. A irmãzinha, muito pequena para compreender o jogo, fora instalada entre travesseiros na cama, e ria porque via os outros rindo. Durante a tarde toda tinham sido felizes os três, como na primeira infância.
The End